sexta-feira, 21 de março de 2008

A Língua nos Dentes I

Vamos amar-nos como fazem os gatos. Tu mordes o meu pescoço e pela minha cara pensarás que estou zangada. Mexo a cabeça por baixo da tua boca. Quero mostrar-te os meus dentes. Mostro-tos. Mas tens os teus no meu pescoço. Respiras. Eu fico zangada. Vou gritar. Quando te separas de mim. Grito. Porque me arranhas. As minhas unhas não estão recolhidas. Olho para ti sem saber se te mordo. Estás calmo. Não te vou morder. Olho para ti. sem saber se te mordo. Amo-te. Até ao fim da noite. Amo-te assim. Com vontade de te morder. Respiras. Mordes-me o pescoço. E depois não sei. Depois vens numa noite e noutras não. E eu vou amar-te. até ao fim de todas elas. Vamos amar-nos. como fazem os gatos. até ao fim da noite. das noites. de todas elas. Quando for de manhã. podes ir-te se quiseres. podes passar um fim-de-semana fora. podes sair sem dizer se voltas. podes não voltar. Outros rondam o nosso jardim. Escolho alguns e deixo-os entrar. Tenho na barriga um filho de cada pai. Tenho na boca a vontade de te morder o pescoço. Tenho no corpo a vontade de te amar outra vez. Escolho alguns e deixo-os entrar. Tenho na barriga um filho de cada pai. Tenho na boca a vontade de lamber primeiro aquele que nascer de ti. Eu sei qual é. Eu vou saber. Tenho no corpo a vontade de te amar outra vez. Tenho na boca a vontade de te morder o pescoço. Tenho na barriga três corpos de gato. E as unhas deles não estão recolhidas. Tenho filhos na barriga. um de cada pai. E se nos encontrarmos outra vez e pensares que estou zangada. Vamos amar-nos como fazem os gatos. Vamos separar-nos. como eles fazem também. Tenho na barriga um filho de cada pai. Tenho no corpo a vontade de te amar outra vez. Respira. Mordes-me o pescoço.

domingo, 2 de março de 2008

Dos amigos

O Juvenal olhou bem para os olhos castanhos do Rogério e disse-lhe gosto de ti. Nunca antes tinha dito isto assim e talvez por isso tivesse os olhos molhados. Os olhos do Rogério nem sempre encontravam os do Juvenal e não lhe deixavam perceber tudo. Os olhos do Juvenal são de plástico mas nem por isso ele deixa de acreditar neles. Ele queria muito que o Rogério percebesse o que se estava a passar. Queria muito dizer-lhe que tudo era tão bonito e verdadeiro como o facto de ele próprio ter os olhos de plástico molhados. Há momentos em que o Juvenal desejava perceber muitas coisas. Desejava coisas diferentes. Na relva, alguns coelhinhos corriam e saltavam alegremente. O Juvenal deixou-se distrair por eles. Deixou enrolar uns instantes nos volteios deles. Achou que não devia chorar à frente do Rogério e não chorou. Depois ouviu o Rogério dizer-lhe sabes, às vezes gostava que a vida fosse simples, como a dos coelhinhos. O Juvenal olhou para o Rogério com os olhos de plástico menos molhados e disse-lhe baixinho eu também. Depois ficou a pensar um bocadinho. Afinal não sabia mesmo se gostava de ter uma vida simples como a dos coelhidos. Sabia só que gostava dos coelhinhos.

Não há mais hãs nem meios hãs

uai.