terça-feira, 10 de junho de 2008
O Coelho Juvenal vai ao psiquiatra I
Apercebo-me doutor de que nos últimos dias tenho desperdiçado muito tempo roendo a erva para que não me cresçam os dentes. Perceba que isto me constrange. A questão do desperdício de tempo. Fico dividido. Entenda que um coelho de peluche não tem dentes. Mas nada disto impede que a relva cresça. E depois é preciso cortá-la. É preciso que não me cresçam os dentes. O Juvenal fez uma pausa para respirar, fez com o nariz um movimento ascendente e descendente de coelho, e soergueu para o doutor os olhos negros de plástico. Disse-lhe. Entenda que preciso de uma droga. Para ficar feliz. Sobre quaisquer circunstâncias. E sem fazer qualquer esforço. O doutor girou a caneta entre os dedos, parou com as suas notas, e franziu o sobrolho para escutar melhor o coelho. E não me diga que essa droga não existe. Porque se não existe pode muito bem inventá-la. E não me diga que não pode inventá-la. E não me diga (não me diga mesmo, sei que estava a pensar nisso) não que diga que ainda depois de a inventar eu terei de fazer um esforço. O Juvenal fez outra pausa para respirar enquanto o doutor franzia mais o sobrolho. O Juvenal fez um movimento típico de coelho com o nariz, assim mexendo-o de cima para baixo. Os olhos negros do Juvenal piscaram duas vezes e a seguir ficaram mais brilhantes. Doutor, sei explicar-lhe que fazer um esforço é totalmente desnecessário e inútil. Outros coelhos não fazem, nunca fizeram, e não planeiam vir a fazer, esforço algum. Fui a muitas lojas que vendiam coelhos de peluche. Olhei bem para eles. Todos eram fofos e tinham um sorriso na cara. Então comprei alguns. Uns dois ou três ou quatro. Depois fiz um plano. Escolhi um coelho bem fofo e com um grande sorriso na cara. Esperei que chovesse. Quando começou a chover, esperei que chovesse mais. Quando já chovia muito fui ao parque e levei comigo o coelho. Abandonei-o num qualquer banco de jardim. Deixei-o sozinho durante toda a noite e no outro dia de manhã esperei que a chuva passasse e fui lá buscá-lo. O coelho tinha o pêlo e escorrido, frio e sem graça, uma das orelhas pendia mais para um lado do que a outra, e as patas estavam-lhe sujas. Mas o sorriso na cara continuava intacto. Sem que para isso ele tivesse feito algum esforço. Então peguei noutro coelho. Dei-o ao dálmata da vizinha. Que é um cão amigo, muito dado a brincadeiras com coelhos. Disse-lhe que brincasse à vontade com o coelho, muito sorridente também. Que lhe arrancasse uma orelha. Coisa que ele gosta. No dia seguinte de manhã fui visitá-lo outra vez e perguntei-lhe se se tinha divertido com o coelho que lhe tinha oferecido. Ele divertira-se imenso e foi buscá-lo para que eu o visse, trazendo-o apertado entre as mandíbulas. Tinha-lhe arrancado uma orelha, duas patas, metade da cauda muito fofa e os dois olhos. Então olhei bem para as órbitas sem olhos do coelho e reparei-lhe no sorriso. Impecável. Florescente. Sem esforço. O Juvenal fez aquela pausa típica para respirar mas não fez nenhum movimento com o nariz. Experimente doutor. Vá a uma dessas lojas que vendem coelhos de peluche. Dos fofos e sorridentes. Escolha um muito fofo e sorridente e leve-o para casa. Quando chegar a casa, deite o coelho numa marquesa de barriga para cima. Pegue num bisturi e aponte-o ao fundo da garganta. Depois espete-o. E faça-o deslizar muito devagarinho até ao fundo da zona pélvica. E depois arranque-lhe para fora. Todas as entranhas. Fofas de feltro. Devagar. Sem pressa. Quando o coelho estiver com as entranhas todas de fora, volte a cozê-lo. Ou não. Isso não será minimamente importante. Importante mesmo é que lhe verifique o sorriso. E voilà. Na cara. Estampadíssimo. Sem esforço. O Juvenal não fez nenhuma pausa para respirar e o doutor relaxou o sobrolho porque a consulta estava a chegar ao fim. Pois doutor que todos os esforços são inúteis, para impedir que a relva cresça. E depois há que cortá-la, para impedir que me cresçam os dentes. E depois fico dividido. Constrangido. Porque não tenho dentes para que me cresçam. Nem sorriso.
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